sábado, 5 de julho de 2014

DOM PEDRO CONTI - ARTIGO DA SEMANA

O discípulo vesgo
Dom Pedro José Conti
Bispo Macapá
 
Um mestre sufi tinha um discípulo vesgo. Certo dia, o mestre deu ao homem a ordem de adentrar-se na mata para recuperar um jarro, que havia deixado ao longo do caminho. Depois de ter andado bastante, o discípulo chegou ao lugar certo, mas ficou maravilhado vendo dois jarros em lugar de um. Voltou atrás correndo e disse:
- Mestre, lá têm dois jarros e não um só como o senhor tinha dito.
O mestre ficou incomodado com essas palavras e respondeu:
- Não preciso de dois jarros, quebra um e traz o outro!
O discípulo, que nunca duvidava da infalibilidade da própria vista, voltou sobre os seus passos e destruiu um dos jarros. Terminado o trabalho, descobriu, porém, amargamente, que não tinha mais nenhum jarro.
Quando observamos as coisas fora de nós e pensamos enxergar algo, devemos lembrar que todos somos como aquele discípulo vesgo. Cada um é aquilo que está vendo, porque o que enxergamos depende de nós. Como podemos ter certeza de ter percebido a verdade?
A moral desta história é simples. A realidade é sempre muito complexa. Cada um de nós consegue enxergar uma parte e esta visão depende, também, da nossa situação, condição, entendimento. Além disso, entram em jogo os preconceitos, a ilusão da nossa superioridade, a nossa visão do mundo, dos acontecimentos e da história. Raramente estamos dispostos a colocar em discussão o nosso ponto de vista e a rever as nossas posições. Para todos, é sempre muito mais cômoda e tranquilizadora a relativa segurança das próprias certezas do que a acolhida de novos questionamentos. O bem conhecido “sempre foi assim”, na maioria das vezes, serve mais para nos proteger do que para defender uma valiosa e equilibrada “tradição”.
Jesus viveu, em sua própria vida, a experiência da rejeição e da acolhida. As suas palavras e o seu jeito incomodaram aqueles que se achavam seguros e bem protegidos nas suas certezas e costumes. O Deus misericordioso que Jesus anunciava batia de frente com a dureza e a minuciosidade da Lei. Poderosos, fariseus e doutores da Lei não conseguiram encaixar Jesus nos seus esquemas rígidos e, quase sempre, interesseiros. Ao contrário, os pequenos, os pobres, os doentes, os pecadores, a turma dos que viviam às margens das normas da pureza, encantaram-se com a novidade e a beleza da mensagem dele.
Podemos chegar à mesma conclusão, por outro caminho. Aqueles que estavam bem instalados nas suas seguranças, privilégios e organizações não entenderam, ou não quiseram entender, a novidade de Jesus. O peso e a rigidez das estruturas são sempre desfavoráveis à renovação. Ao contrário, os pequenos e os pobres não tinham nada a perder e tudo a ganhar. Não falo do ponto de vista econômico, porque Jesus deixou bem claro que não ia ser um líder político e nem tinha ambições para isso. Eles reconheceram que estavam ganhando a preferência do próprio Deus. Na simplicidade e liberdade do seu coração perceberam que o Deus das antigas promessas devia ser mesmo como Jesus estava falando, ensinando e agindo. Não podia ser um “juiz” rigoroso e inflexível, que premiava ou castigava ao seu capricho. Se o Deus dos escribas e fariseus os excluía e maltratava, por causa de tantos pecados, verdadeiros ou inventados, o Deus Pai, do qual Jesus falava, os acolhia, amava e perdoava. Os grandes ficaram com medo, os pequenos exultaram. Os donos do mundo crucificaram Jesus, os fracos não deixaram nunca mais apagar a sua memória: creram nele. Quando Jesus viu a alegria dos simples, também louvou ao Pai que a eles se revelava, mas se afastava dos soberbos e orgulhosos, escondia-se dos que se achavam sábios e entendidos.
É bom não termos sempre total certeza da nossa verdade. Somente na humildade saberemos enxergar e trilhar caminhos novos de conversão, de amor e fraternidade. Busca saudável é para abrir caminhos, para criar e construir, não para destruir. É preciso enxergar bem. De dois vasos pode não sobrar nenhum.

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